terça-feira, 30 de agosto de 2011

Dona Léa


O inverno mais cinza das últimas décadas não dá trégua. Mas mesmo assim as pessoas casam, engravidam e os filhos nascem. O frio não quer saber de nada, muito menos do nosso estado de espírito.

E assim as folhinhas do calendário mudam na estação infinita.

Até que chegou o dia 19 de agosto. Sexta-feira e frio de rachar. A agenda social previa o chá-de-fraldas da Beloca. Pela anfitriã valia qualquer esforço. A mãe dela é minha amada comadre Eunice, uma pessoa pra lá de especial.

Sorte do Joaquim, o nenê que habita a barriga da Beloca e que deu a sorte de ter uma avó-coruja como ela. Com esse histórico emocional nos enroupamos animadas e partimos para o tal do chá.

Obviamente que chá-de-fralda é igual em qualquer lugar do planeta. Até na tribo Kaiapó deve ter o mesmo itinerário. Entre presentes e empadinhas falamos amenidades e trocamos receitas de vida doméstica.

No meu caso a tarde foi uma delícia, além dos salgadinhos crocantes conheci a Nídia. Ela é filha de um amigão da minha Comadre, e de cara a sintonia já rolou. Foram listas intermináveis de assuntos, todos deliciosos como as bandejas que passavam.

Como todo chá que se preze, a gente enche o “pandulo’ e quando menos espera já é hora de ir embora. Tai o segredo do encontro.

E naquela de despedidas pra lá e pra cá, surge uma pessoas que jamais passaria despercebida. O cabelo bem alinhado, maquiagem no ponto e uma bolsinha equilibrada no antebraço.

Vamos combinar...a verdade é que tem que ter muita energia para equilibrar uma bolsinha no antebraço em um dia infernal do inverno pelotense. Só a Dona Léa para encarar uma dessas, e vocês já vão saber o porquê.

Ela se aproximou da nossa mesa para dar um tchau e começou a desfiar um rosário de alto astral.

Nesse meio tempo, minha mãe comentou o quanto ela era bem disposta. Relembrou que tinha perdido um filho há uns anos, em um acidente de moto.

Só por esse currículo ela já teria todo direito a largas olheiras e algumas rugas de tristeza. Mas esses sinais não estavam naquele rosto alegre, quase juvenil. Perguntei qual o segredo para aquele ar tão leve. Ela me olhou nos olhos com calma, e disse:

- Minha filha, eu não dou direito à tristeza! Quando ela pensa em chegar eu pego minha bolsa e vou para o calçadão. Depois de ver vitrines, conversar com as pessoas e ouvir um pouco de cada história, não há como voltar com a mesma cara!

Receita comum, quase como a de um arroz. Resultado indescritível, o mesmo que sentimos quando provamos o prato que tem sabor de infância. Simples, mas imensurável!

Ela é viúva, mora sozinha, e me disse que quando está de baixo astral convida o Julio Iglesias para dançar. Coloca os discos a tocar bem alto e canta com ele os clássicos que não a deixam esquecer a força do amor.

A outra receita dessa jovem de 84 anos é fazer viagens de terceira idade. Foi em uma dessas que conheceu o namorado. Mas se engana quem pensa que um homem era o que queria para alegrar seus dias.

Dona Léa adora uma boa companhia. Mas volta e meia dá um jeito do consorte voltar para sua terra natal. Ela retoma sua rotina e convence o sortudo de que a saudade acende o amor.

Tanta sabedoria não estaria trajando uma roupa qualquer naquele chá de agosto. Este espírito vibrante obviamente reluzia no salão em um casacão de lã azul piscina.

Ela contrastava naquele mar de roupas em tom bege, passando pelo marrom e terminando no preto. Cheguei à conclusão de que nos vestimos como nosso espírito nos dias de inverno. Sem dúvida.

Mas aquela tarde de agosto mudou minha vida. Depois de conhecer Dona Léa decidi repensar meus conceitos de comodismo. Não vou deixar o inverno se arrastar durante longos meses de penúria na minha alma.

É isso aí, amanhã se a tristeza bater vou me tocar para o Calçadão. Vou ver vitrines, conversar com as pessoas. Só não garanto que acabe na loja de CDs procurando pelo Julio Iglesias.

Aí também é demais né Dona Léa??!!!!

domingo, 7 de agosto de 2011

Uga-uga



A fase do baixo-astral imperava até que um puxão de orelhas sacudiu o cotidiano morno. Eu curtia dias oscilantes, entre o trabalho, afazeres domésticos e a digestão da perda.

Não faz nem dois meses que meu pai partiu. Desde então estou de mala e cuia na casa da mãe, junto com a Sofia. Nossa presença tem sido o suporte necessário para ela se reencontrar.

Para completar o cenário, o inverno mais frio e cinza das últimas décadas deu as caras. Nesse contexto me esforço para pelo menos disfarçar que estou bem.

Só que se tem coisa que eu nunca soube, foi fazer cara de uma coisa e sentir outra. Então as olheiras não desaparecem nem com o mais eficiente reboco.

Me olho no espelho e procuro encontrar vestígios que levem até mim. Não lembro mais o dia em que me arrumei e achei que estava bonita. Essas coisas são relativas, mas a gente sempre tem um dia que ‘se acha’.

Cadê o meu dia, cadê minha auto-estima?

Mas como dizem as frases que estampam nossas agendas juvenis, ‘quem tem amigos, tem tudo na vida’. Foi na base do joelhaço que duas amigas queridas me puxaram para um papo-cabeça.

A dupla há dias me convidava para tomar um mate, um café, um champanhe, um conhaque ou um copo d´água. Eu sempre saia pela tangente, com a certeza de que o melhor lugar seria a minha concha interior, em meio a lembranças e saudades.

Até que semana passada ela torpedaram um decreto no meu celular. Recebi uma mensagem que instituía um encontro na quarta-feira, às 20h, na casa de uma delas.

Li, e sem a menor vontade de ir, respondi que tudo bem, mas que não estava com vontade de beber nada. Isso já traduzia a minha disposição para o encontro.

No dia marcado tomei um banho, lavei os cabelos gosmentos e me entupi de roupas já que a noite era assombrosamente fria. Liguei o costumeiro piloto-automático e segui a passos lentos.

Quando cheguei, um ambiente acolhedor me esperava. Lareira, uma mesa linda, founde, vinho e umas carinhosas pantufas para deixar marcado o acolhimento do corpo e da alma.

Entre um naco de filé e outro, provei diferentes molhos e enfáticos conselhos. Cada uma, a seu modo, mostrou um mar de possibilidades que eu estava deixando passar levada pela correnteza diária.

O desânimo estava me fazendo sucumbir ao que mais prezo: a alegria de viver. Viver um luto, tudo bem. Mas deixar que os dias me sufoquem de tédio não.

A Paula me disse uma coisa que nunca mais vou esquecer. Que quando a alma está triste a gente deixa o corpo de lado. Fica tudo pra depois.

Os pelos invadem a nossa vaidade e esquecemos que existe a depilação. As unhas e cutículas seguem se proliferando, mas não lembramos que existe a manicure. Ela definiu como “a síndrome da unha comprida”.

E assim vamos caminhando sem cantar. Os dias passam como capítulos apressados de uma novela sem graça. Nos tornamos seres das cavernas com olhos de tristeza.

Assim eu estava, vivendo a tal da síndrome, totalmente imersa nela.

A Jajá me lembrou do quanto é importante celebrar a vida. Lição que aprendi com meu pai, e que vivo repetindo nos textos desse blog. Mas me dei conta de que minha teoria estava longe da prática.

O founde de chocolate chegou na mesa de toalha florida, e com ele provei o doce sabor de um puxão de orelhas bem dado. Coisa boa ter amigos para acender a lanterninha de emergência da minha consciência.

Sai de lá pensando um milhão de coisas. No dia seguinte, depois de deixar a Sofia na sala de aula, a Jajá me puxou para um cafezinho na cantina do colégio.

Reforçou a lição de quarta-feira e listou alguns pontos eficientes para impulsionar meu recomeço. Lembrei de minha avó Nóris, a quem carinhosamente chamo de Chochó. Ela sempre soube transformar as tristezas da vida em bons momentos.

Minha mãe conta que meu avô estava em um câncer terminal, internado na Beneficência Potuguesa. A data do aniversário de casamento deles se aproximava.

Ela ligou para um buffet que era o mais prestigiado da época. Contratou um jantar delicioso, louças primorosas e um serviço de primeira.

Meus avós brindaram a data em meio a suportes de soro, baixelas de prata e um amor imensurável. Ele se foi alguns meses depois, mas levou consigo a verdadeira essência do bem viver.

Então depois dessa lição não tive dúvidas. Acordei sábado com uma lista de metas a cumprir: depilação às 10h, manicure 11h30 e banho de luz às 12h. Isso só pra começo de conversa.

Já estou me sentindo mais leve. Não sei se foram os quilos de pelos e cutículas que não carrego mais comigo, mas a verdade é que começo a ressurgir das cinzas.

Chega de carregar a tristeza, agora ela vai caminhar ao meu lado. E tenho certeza de que vamos nos divertir juntas. Cada momento transformador tem a sua mensagem e começo a ler os ensinamentos desse.

Não posso fechar os olhos para cada dia que se apresenta, todinho para ser vivido. Então adeus ‘síndrome das unhas compridas’. Estou de volta, totalmente renovada.

Deixo a caverna de lado e troco o modelito de oncinha por uma calça jeans. Saiam da frente porque a fase “Uga-uga” acaba de acabar!