segunda-feira, 9 de julho de 2012

Castelo de letras


Temos muitos medos. Todos nós os temos. Ficam guardados em caixas herméticas. Sem janelas. Longe da luz.

Alguns são maiores, outros até bobos. Mas todos ficam devidamente lacrados. Guardamos para que não escapem. Não se transformem em realidade.

Não batam à nossa porta em uma tarde de inverno.

Domingo assisti a uma notícia que me paralisou. Gabriel Garcia Márquez não irá mais escrever.

O irmão, Jaime Garcia Márquez, que vive em Cartagena de Índias, anunciou que o escritor está com demência senil. Um dos sinônimos da doença de Alzheimer.

Seu corpo continua saudável. Mas a cortina do mundo das letras se fechou.

O irmão liga todos os dias para lhe relembrar fatos. Estende a corda além do abismo. Gesto de amor, esperança.

A primeira vez que tive contato com a senilidade foi ainda adolescente. A irmã mais moça de minha Voinha se perdeu no tempo.

Tia Bebete morava no Rio de Janeiro. Casada com Tio Gregório, um espanhol que parecia ter vindo dos livros de Maria Dueñas.

Nosso contato com aquela tia-avó moderna era nos meses de julho. Fugíamos do frio e encontrávamos o epicentro da terra.

Entre outras revoluções, nos levou pela primeira vez à confeitaria Colombo. Apresentou um mundo que nem sonhávamos existir.

Ensinou a não beber durante as refeições e pediu a primeira Ceasar Salad da minha vida.

Até que numa bela tarde de outono, veio a notícia. Tia Bebete estava doente. Não lembrava mais das coisas. Confundia as datas. Criava histórias. Se perdia pelas ruas.

Uma tristeza invadiu minha Voinha. Mulher de fé, aceitou os desígnios de Deus.

Mas eu não entendia. Como pode uma pessoa perder-se de si mesmo?

O amadurecimento e o tempo me trouxeram as respostas. A parte teórica dessas histórias. Mas como aceitar os últimos capítulos de uma vida em branco?

Esse é um dos medos que guardo bem lá no fundo da minha caixa secreta.

Gabriel Garcia Marquez, o Gabo, escreveu que o segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão.

Será que foi essa a solidão que ele imaginou?

Seu castelo de letras desmoronou. Milhões de fãs estão com o coração em suspenso. Sua obra será eterna, mas seus dias agora são como cometas. Fugazes instantes entre o real e o imaginário.

Tenho medo, muito medo da senilidade. Dos que eu amo, dos que admiro, de mim mesma.

Como escreveu Gabo, em O Amor nos Tempos de Cólera:

“As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas”.