
Nasci às 19h10 de um dia 29 de outubro do ano que não terminou. Minha mãe, no alto de seus 19 anos, encarou um parto normal, na raça. Coisa que não se vê mais hoje em dia.
Ela conta que a Casa de Saúde Santa Tereza não tinha obstetrícia na época, e por isso deu a luz no quarto. Enquanto ela fazia força, driblando as contrações, uma torcida de parentes e amigos assistia o momento da sacada.
Cena pra lá de insólita. Era um dia de primavera como não se faz mais hoje em dia. Enquanto isso, em algum lugar do país, estudantes desafiavam a ditadura com a cara e a coragem. O ano de 1968 estava em ebulição e eu chegava sem passaporte.
Enquanto fervia a revolução estudantil, minha mãe olhava para aquela "carinha de joelho", tirada a fórcepes, e achava lindo o que via. Como não existia ultrasonografia, no portão de desembarque todos esperavam pelo Rafael.
Quando aquela polpa rosada apontou em direção à parteira, os olhares surpresos perguntaram para minha mãe qual seria o nome da menina.
Ela pensou por um instante e disse:
- Gabriela, em homenagem ao anjo Gabriel, o mensageiro!
Depois dessa inspiração ela disse que estava com desejo de comer uma canja. O tio Rubenzinho foi encarregado de materializar o pedido da parturiente.
Reza a lenda que ele buscou um bem servido prato no tradicional Restaurante Gago, muito conhecido na época. Enquanto isso meu pai se encarregava de fumar um charuto com o Dindo Bebeto, como era de tradição.
Depois dessa chegada triunfal, só me restou ter uma infância também atípica. Saímos do hospital e ali começou a minha história.
Pode não parecer muito longe, mas nasci em uma geração de transformação. A década de 70 seguiu quebrando paradigmas, revolucionando uma vida que até então parecia ser linear.
Quando paro pra pensar nas delícias da minha infância, me dou conta de que o tempo de ontem era verdadeiramente mais lento. Tive a sorte de brincar sem vídeo-game, computador ou qualquer coisa que emitisse barulhos artificiais.
O auge dos meus brinquedos modernos foi o tal do Manequinho, que tomava mamadeira e fazia xixi. Ganhei do tio Ricardo.
Mas antes disso tive o meu jipe vermelho, as fazendinhas feitas com batata e palitos, o jogo de sapata, esconde-esconde e outras deliciosas brincadeiras que hoje raramente ouvimos falar.
Assim se passaram os tranqüilos anos da minha infância, supervisionados pela “Mãe Cema”, que nos cuidava enquanto minha mãe fazia a faculdade. Difícil resumir esse tempo tão rico em poucas linhas. Mereceria um livro.
Veio a adolescência e com ela os primeiros conflitos. Confesso que não achei nenhuma graça nessa fase, exceto pela trilha sonora que nunca mais se repetiu. Se pudesse pular, teria feito de bom grado, desde que pudesse levar meus discos do Legião Urbana debaixo do braço.
Meu primeiro namorado era um chato. Dele ganhei o primeiro beijo e a primeira decepção. Chorei mais por pena de ter perdido meu tempo com ele, do que por qualquer outra coisa.
Depois do primeiro tombo fiquei mais esperta e não entrei em canoa furada tão facilmente. Fui mais seletiva e aprendi rapidamente as regras do jogo. Mesmo assim, muitas lágrimas escorpianas inundaram meu travesseiro.
Na verdade a fase de juventude foi recebida com aplausos. Ter carteira de motoristas, viajar sozinha para Garopaba e administrar o meu próprio salário, foram conquistas incríveis. Nessa época éramos guiados pelo sabor do vento e a liberdade nos dava asas.
Incrível como nesse pedaço da vida a gente acha que a barriga sempre vai ser de tanquinho, o cabelo vai resistir a qualquer experiência química e que filtro solar é bobagem. Todos acham, é inevitável!
Mas por isso o tempo é sábio e com o rodar do relógio nos aponta nossos vacilos.
Difícil ser adulto, eu sei, mas sem dúvida é muito melhor. Reclamamos de muitas coisas, mas a maturidade é o melhor dos presentes. Com ela enxergamos a vida, por dentro e por fora. A imensidão das galáxias que habitam nosso universo interior.
Saímos da superfície e mergulhamos no mar dos grandes sentimentos.
Priorizamos um amor parceiro e enxergamos nossos pais com compreensão. Descobrimos que o amor por um filho é o sentimento mais generoso que existe. Queremos dar, simplesmente amar.
E com essa fase adulta, quando alcançamos as quatro gerações, começamos a correr riscos.
Invariavelmente passamos a ter perdas. Primeiros nossos avós, depois nossos pais. O choque da finitude bate a nossa porta. Taí a parte ruim da maçã.
Esse é meu primeiro aniversário sem meu pai. Passei a semana choramingando. Como disse uma amiga: vivi intensamente o meu inferno astral. Vai ser o primeiro 29 de outubro sem aquela voz me dizendo: "Fili, parabéns, aniversariante!"
Era assim que ele fazia. E vou sentir essa falta!
Pra completar, tudo aconteceu essa semana. Emoções concentradas e minha coluna em frangalhos.
Procurei um ombro amigo, uma acupuntura e por fim uma massagem. Com essa receitinha básica me preparei para receber os 43 anos de vida.
A Tatá coloriu a casa com as flores do nosso jardim e eu fui fazer as unhas.
Vou passar em casa, quietinha, deixando que os abraços cheguem com o vento. Quero comemorar em silêncio, olhando mais pra dentro do que pra fora.
A fase é contemplativa. Quantos dias 29 de outubro ainda me restam? Não quero dramas, mas a vida parece que começa a escorrer das nossas mãos com rapidez.
Qual a receita para segurá-la?
Sou otimista, nunca fumei, odeio ginástica, tomo água, acredito em Deus, tô aprendendo a perdoar, tenho medo de altura, não uso batom, gosto de ler, como salada, sou fiel, uso cinto de segurança, estou ficando surda, amo praia e, obviamente...adoro melancia.
Então cá pra nós, que venham mais 43. No mínimo!