sexta-feira, 28 de outubro de 2011

29 de outubro


Nasci às 19h10 de um dia 29 de outubro do ano que não terminou. Minha mãe, no alto de seus 19 anos, encarou um parto normal, na raça. Coisa que não se vê mais hoje em dia.

Ela conta que a Casa de Saúde Santa Tereza não tinha obstetrícia na época, e por isso deu a luz no quarto. Enquanto ela fazia força, driblando as contrações, uma torcida de parentes e amigos assistia o momento da sacada.

Cena pra lá de insólita. Era um dia de primavera como não se faz mais hoje em dia. Enquanto isso, em algum lugar do país, estudantes desafiavam a ditadura com a cara e a coragem. O ano de 1968 estava em ebulição e eu chegava sem passaporte.

Enquanto fervia a revolução estudantil, minha mãe olhava para aquela "carinha de joelho", tirada a fórcepes, e achava lindo o que via. Como não existia ultrasonografia, no portão de desembarque todos esperavam pelo Rafael.

Quando aquela polpa rosada apontou em direção à parteira, os olhares surpresos perguntaram para minha mãe qual seria o nome da menina.

Ela pensou por um instante e disse:

- Gabriela, em homenagem ao anjo Gabriel, o mensageiro!

Depois dessa inspiração ela disse que estava com desejo de comer uma canja. O tio Rubenzinho foi encarregado de materializar o pedido da parturiente.

Reza a lenda que ele buscou um bem servido prato no tradicional Restaurante Gago, muito conhecido na época. Enquanto isso meu pai se encarregava de fumar um charuto com o Dindo Bebeto, como era de tradição.

Depois dessa chegada triunfal, só me restou ter uma infância também atípica. Saímos do hospital e ali começou a minha história.

Pode não parecer muito longe, mas nasci em uma geração de transformação. A década de 70 seguiu quebrando paradigmas, revolucionando uma vida que até então parecia ser linear.

Quando paro pra pensar nas delícias da minha infância, me dou conta de que o tempo de ontem era verdadeiramente mais lento. Tive a sorte de brincar sem vídeo-game, computador ou qualquer coisa que emitisse barulhos artificiais.

O auge dos meus brinquedos modernos foi o tal do Manequinho, que tomava mamadeira e fazia xixi. Ganhei do tio Ricardo.

Mas antes disso tive o meu jipe vermelho, as fazendinhas feitas com batata e palitos, o jogo de sapata, esconde-esconde e outras deliciosas brincadeiras que hoje raramente ouvimos falar.

Assim se passaram os tranqüilos anos da minha infância, supervisionados pela “Mãe Cema”, que nos cuidava enquanto minha mãe fazia a faculdade. Difícil resumir esse tempo tão rico em poucas linhas. Mereceria um livro.

Veio a adolescência e com ela os primeiros conflitos. Confesso que não achei nenhuma graça nessa fase, exceto pela trilha sonora que nunca mais se repetiu. Se pudesse pular, teria feito de bom grado, desde que pudesse levar meus discos do Legião Urbana debaixo do braço.

Meu primeiro namorado era um chato. Dele ganhei o primeiro beijo e a primeira decepção. Chorei mais por pena de ter perdido meu tempo com ele, do que por qualquer outra coisa.

Depois do primeiro tombo fiquei mais esperta e não entrei em canoa furada tão facilmente. Fui mais seletiva e aprendi rapidamente as regras do jogo. Mesmo assim, muitas lágrimas escorpianas inundaram meu travesseiro.

Na verdade a fase de juventude foi recebida com aplausos. Ter carteira de motoristas, viajar sozinha para Garopaba e administrar o meu próprio salário, foram conquistas incríveis. Nessa época éramos guiados pelo sabor do vento e a liberdade nos dava asas.

Incrível como nesse pedaço da vida a gente acha que a barriga sempre vai ser de tanquinho, o cabelo vai resistir a qualquer experiência química e que filtro solar é bobagem. Todos acham, é inevitável!

Mas por isso o tempo é sábio e com o rodar do relógio nos aponta nossos vacilos.

Difícil ser adulto, eu sei, mas sem dúvida é muito melhor. Reclamamos de muitas coisas, mas a maturidade é o melhor dos presentes. Com ela enxergamos a vida, por dentro e por fora. A imensidão das galáxias que habitam nosso universo interior.

Saímos da superfície e mergulhamos no mar dos grandes sentimentos.

Priorizamos um amor parceiro e enxergamos nossos pais com compreensão. Descobrimos que o amor por um filho é o sentimento mais generoso que existe. Queremos dar, simplesmente amar.

E com essa fase adulta, quando alcançamos as quatro gerações, começamos a correr riscos.

Invariavelmente passamos a ter perdas. Primeiros nossos avós, depois nossos pais. O choque da finitude bate a nossa porta. Taí a parte ruim da maçã.

Esse é meu primeiro aniversário sem meu pai. Passei a semana choramingando. Como disse uma amiga: vivi intensamente o meu inferno astral. Vai ser o primeiro 29 de outubro sem aquela voz me dizendo: "Fili, parabéns, aniversariante!"

Era assim que ele fazia. E vou sentir essa falta!

Pra completar, tudo aconteceu essa semana. Emoções concentradas e minha coluna em frangalhos.

Procurei um ombro amigo, uma acupuntura e por fim uma massagem. Com essa receitinha básica me preparei para receber os 43 anos de vida.

A Tatá coloriu a casa com as flores do nosso jardim e eu fui fazer as unhas.

Vou passar em casa, quietinha, deixando que os abraços cheguem com o vento. Quero comemorar em silêncio, olhando mais pra dentro do que pra fora.

A fase é contemplativa. Quantos dias 29 de outubro ainda me restam? Não quero dramas, mas a vida parece que começa a escorrer das nossas mãos com rapidez.

Qual a receita para segurá-la?

Sou otimista, nunca fumei, odeio ginástica, tomo água, acredito em Deus, tô aprendendo a perdoar, tenho medo de altura, não uso batom, gosto de ler, como salada, sou fiel, uso cinto de segurança, estou ficando surda, amo praia e, obviamente...adoro melancia.

Então cá pra nós, que venham mais 43. No mínimo!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mundo das Letras II

Quando a Sofia entrou para o colégio falei aqui das minhas inseguranças no ingresso daquele mundo novo. A minha borboleta ganhava asas e os desafios diários extravasavam os limites da nossa segurança doméstica.

Escolhemos uma escola com nome de poeta. Esse simbolismo me deu uma sensação boa, meio mística. Como não se sentir atraída por um nome que povoou meus encantos literários?

Então decidimos seguir a filosofia do Mário Quintana. Como ele mesmo pregou, a resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.

Os primeiros passos daquela nova aventura contaram com um anjo da guarda chamado carinhosamente por seus discípulos de “Profi Michele”. Aquela guria novinha, com cara de amiga da minha irmã, conquistou minha confiança e despertou profunda admiração.

Consegui enxergar naqueles olhos amendoados a certeza de que minha filha estava bem guardada. A doçura e firmeza de uma profissional de primeira linha foram essenciais nesse processo de rompimento umbilical.

Junto com essa entrega, tive várias crises. A cada cena pouco civilizada no engarrafamento do colégio, dúvidas me assolavam. Me perguntava se o colégio estaria caminhando de mãos dadas com os valores que pregamos em casa.

Incertezas mil, nos mais pequenos detalhes do cotidiano escolar.

Como entender um colégio que tem a filosofia de que o importante é ser “o melhor”? Em tempos de globalização, muita competição e pouca gentileza, sentia falta da singeleza nas entranhas dos corredores.

Mas aos poucos fui me adaptando e entendendo os prós e contras da escola. Ao longo desse primeiro ano a figura dessa professora, tão jovem e tão experiente, foi fundamental.

Para amenizaram o contraponto desse mundo novo, conversei, refleti e esperei a poeira baixar. Vi muitos profissionais apaixonados pela pedagogia circularem pelas paredes coloridas daquele mundo estudantil.

Mas aquele rostinho seguro da primeira professora da Sofia, foi a chave desse primeiro passo do mundo que gira.

No começo desse ano, de novo o frio no estomago. Minha sensação de acolhimento estava diretamente ligada a uma pessoa, e não ao ambiente em si.

Fui para reunião de apresentação dos professores com a respiração em suspenso. Sentei no auditório e aguardei as tradicionais falas e recados do início do trimestre.

Feitas as primeiras apresentações, surge uma pessoa colorida, com sorriso rasgado no rosto. Entre os cachos escuros e a pele branca, se percebia um brilho intrigante no olhar.

A professora se chamava Karine e antes de finalizar o protocolo pedagógico pediu a palavra.

Disse que queria que soubéssemos que ela tinha total entendimento da responsabilidade que lhe chegava a partir daquele momento. Falou que pensou em uma forma de traduzir para nós, pais, essa certeza.

Foi aí que tirou de um saquinho várias pedrinhas coloridas. Explicou que aquele pequeno tesouro simbolizava os nossos filhos. Pediu que cada um retirasse uma pedra e repetisse para ela o nome da criança.

Olhei para aqueles olhos brilhantes, e disse emocionada:

- Sofia, esse é o meu maior tesouro!

Ela sorriu e sem precisar falar nada, me deu a senha de que mais uma vez o anjo certo tinha caído na minha rede.

A Karine abriu as portas de um novo mundo para os nossos filhos. Apresentou as letras e todo o significado que a leitura tem aos nossos ávidos aprendizes.

Semanas atrás, tivemos a última reunião de pais, antes da formatura dos nossos pequenos. Na platéia uma legião de pais embasbacados com o progresso dos filhos.

Essa pessoa de sorriso largo, ensinou bem mais do que o alfabeto. Ela soprou a alma de cada um. Coloriu seus talentos e ajudou a subir o degrau mais simbólico da vida: o da liberdade.

Mostrou através de sua sensibilidade, os verdadeiros valores que importam na vida. Trabalhou as diferenças e evidenciou a importância de cada um individualmente.

Mais do que entender que somos de várias cores, classes e estilos, ela ensinou aos nossos filhos o quanto é importante o respeito. Aprender todo mundo aprende, mas sentir não é para todos.

Terminada a reunião não tive coragem de traduzir tudo que queria dizer. Fiquei muda, engasgada e emocionada.

Decidi por não falar e tentar escrever. Como a Karine ensinou aos nossos filhos, cada uma tem seu talento, e aprendi que fala não é para mim.

Sai dali e minha cabeça viajou por cada mudança da Sofia nesses meses de transformação. Olhei para a filha que tinha e para aquela menina decidida que estava sentada na cadeirinha do banco de trás do carro.

Minhas dúvidas e críticas a alguns valores da escola continuam existindo. Mas a esperança de que os administradores aprendam com esses exemplos que eles têm no seu quadro de funcionários, permanece.

Quem sabe um dia esses “anjos” não conseguem mostrar que o importante não é ser o melhor, mas sim o mais feliz.

A vida é rápida demais para se gastar toda energia na busca do pódium mais alto. Talvez lá de cima não se consiga contemplar o horizonte com a mesma magnitude.

A pedrinha que ganhei na primeira reunião de pais continua na minha carteira. Hoje tenho a certeza de que meu tesouro foi lapidado com carinho.

Não que ela tenha mudado sua essência, jamais. Mas aquele brilho no olhar que enxerguei na “Profi Karine” em março, estava nos olhos da minha filha quando arrancamos o carro para casa.

Afinal de contas, tudo realmente vale a pena, se a alma não é pequena. Salve o poeta e as professoras de verdade!