domingo, 7 de agosto de 2011

Uga-uga



A fase do baixo-astral imperava até que um puxão de orelhas sacudiu o cotidiano morno. Eu curtia dias oscilantes, entre o trabalho, afazeres domésticos e a digestão da perda.

Não faz nem dois meses que meu pai partiu. Desde então estou de mala e cuia na casa da mãe, junto com a Sofia. Nossa presença tem sido o suporte necessário para ela se reencontrar.

Para completar o cenário, o inverno mais frio e cinza das últimas décadas deu as caras. Nesse contexto me esforço para pelo menos disfarçar que estou bem.

Só que se tem coisa que eu nunca soube, foi fazer cara de uma coisa e sentir outra. Então as olheiras não desaparecem nem com o mais eficiente reboco.

Me olho no espelho e procuro encontrar vestígios que levem até mim. Não lembro mais o dia em que me arrumei e achei que estava bonita. Essas coisas são relativas, mas a gente sempre tem um dia que ‘se acha’.

Cadê o meu dia, cadê minha auto-estima?

Mas como dizem as frases que estampam nossas agendas juvenis, ‘quem tem amigos, tem tudo na vida’. Foi na base do joelhaço que duas amigas queridas me puxaram para um papo-cabeça.

A dupla há dias me convidava para tomar um mate, um café, um champanhe, um conhaque ou um copo d´água. Eu sempre saia pela tangente, com a certeza de que o melhor lugar seria a minha concha interior, em meio a lembranças e saudades.

Até que semana passada ela torpedaram um decreto no meu celular. Recebi uma mensagem que instituía um encontro na quarta-feira, às 20h, na casa de uma delas.

Li, e sem a menor vontade de ir, respondi que tudo bem, mas que não estava com vontade de beber nada. Isso já traduzia a minha disposição para o encontro.

No dia marcado tomei um banho, lavei os cabelos gosmentos e me entupi de roupas já que a noite era assombrosamente fria. Liguei o costumeiro piloto-automático e segui a passos lentos.

Quando cheguei, um ambiente acolhedor me esperava. Lareira, uma mesa linda, founde, vinho e umas carinhosas pantufas para deixar marcado o acolhimento do corpo e da alma.

Entre um naco de filé e outro, provei diferentes molhos e enfáticos conselhos. Cada uma, a seu modo, mostrou um mar de possibilidades que eu estava deixando passar levada pela correnteza diária.

O desânimo estava me fazendo sucumbir ao que mais prezo: a alegria de viver. Viver um luto, tudo bem. Mas deixar que os dias me sufoquem de tédio não.

A Paula me disse uma coisa que nunca mais vou esquecer. Que quando a alma está triste a gente deixa o corpo de lado. Fica tudo pra depois.

Os pelos invadem a nossa vaidade e esquecemos que existe a depilação. As unhas e cutículas seguem se proliferando, mas não lembramos que existe a manicure. Ela definiu como “a síndrome da unha comprida”.

E assim vamos caminhando sem cantar. Os dias passam como capítulos apressados de uma novela sem graça. Nos tornamos seres das cavernas com olhos de tristeza.

Assim eu estava, vivendo a tal da síndrome, totalmente imersa nela.

A Jajá me lembrou do quanto é importante celebrar a vida. Lição que aprendi com meu pai, e que vivo repetindo nos textos desse blog. Mas me dei conta de que minha teoria estava longe da prática.

O founde de chocolate chegou na mesa de toalha florida, e com ele provei o doce sabor de um puxão de orelhas bem dado. Coisa boa ter amigos para acender a lanterninha de emergência da minha consciência.

Sai de lá pensando um milhão de coisas. No dia seguinte, depois de deixar a Sofia na sala de aula, a Jajá me puxou para um cafezinho na cantina do colégio.

Reforçou a lição de quarta-feira e listou alguns pontos eficientes para impulsionar meu recomeço. Lembrei de minha avó Nóris, a quem carinhosamente chamo de Chochó. Ela sempre soube transformar as tristezas da vida em bons momentos.

Minha mãe conta que meu avô estava em um câncer terminal, internado na Beneficência Potuguesa. A data do aniversário de casamento deles se aproximava.

Ela ligou para um buffet que era o mais prestigiado da época. Contratou um jantar delicioso, louças primorosas e um serviço de primeira.

Meus avós brindaram a data em meio a suportes de soro, baixelas de prata e um amor imensurável. Ele se foi alguns meses depois, mas levou consigo a verdadeira essência do bem viver.

Então depois dessa lição não tive dúvidas. Acordei sábado com uma lista de metas a cumprir: depilação às 10h, manicure 11h30 e banho de luz às 12h. Isso só pra começo de conversa.

Já estou me sentindo mais leve. Não sei se foram os quilos de pelos e cutículas que não carrego mais comigo, mas a verdade é que começo a ressurgir das cinzas.

Chega de carregar a tristeza, agora ela vai caminhar ao meu lado. E tenho certeza de que vamos nos divertir juntas. Cada momento transformador tem a sua mensagem e começo a ler os ensinamentos desse.

Não posso fechar os olhos para cada dia que se apresenta, todinho para ser vivido. Então adeus ‘síndrome das unhas compridas’. Estou de volta, totalmente renovada.

Deixo a caverna de lado e troco o modelito de oncinha por uma calça jeans. Saiam da frente porque a fase “Uga-uga” acaba de acabar!

10 comentários:

lugastal disse...

siamesa querida, dar-se o tempo necessário é importante, mas estou feliz em ler o post! um recomeço é muito bom também! beijão!

aljacira disse...

Minha querida, "as pantufas" e tudo que elas significam estarão sempre na minha casa te esperando, assim como a nossa taça de vinho para continuarmos celebrando a vida e reforçando a importância e a força de uma amizade. A vida seguirá seu curso, ora nos tirando algumas coisas, ora trazendo outras gratas surpresas. E a nós cabe tirar dela o melhor, descobrindo e exercitando o "nosso melhor". Caminhando, apreendendo, caindo, levantando, mas sempre evoluindo, juntas, de pantufas nos pés e prontas para dar e receber muitos puxões de orelhas...Beijão, Jajá

Anônimo disse...

Que boa notícia! Fico feliz de ler que a alegria volta a reinar, na intensidade que o momento permite, mas na essência que a vida precisa! Bj Greice

Anônimo disse...

Querida! Fiquei muito feliz! Digamos que teu post, que teoricamente em nada tem a ver comigo, também me deu um puxão de orelha!
Bora viver, com nossas dores e alegrias!
Beijocas e ve se agora reserva um tempinho pra gnt fazer algo!!!
Mil bjs

Paula Varela disse...

Gabi...algumas lágrimas surgiram, pela tua perda,pelo teu renascimento, e pela imensa felicidade de fazer parte da tua vida. Obrigada!!

Daiana disse...

E eu vou aprendendo com tuas palavras...obrigada por tirar um pouco do "cinza" dos meus dias com teus textos...

Anônimo disse...

sobrinha querida . tua capacidade de transformar um obvio sorriso em uma enorme gargalhada me aproxima ainda mais do teu coraçao, parabens e muitos beijos tia carmen.

Anônimo disse...

"Bora lá!!!" Tô te esperando...
Beijão,
Dica.

Ana Cândida disse...

Imagino que este será o melhor presente que teu pai recebeu,nesta data, teu Renascimento.

Janice Coelho disse...

Que lindo, tenho certeza que o coração do teu pai se encheu de serenidade quando viu esse final de fase. Como são lindas as metamorfoses que passamos na vida.

Um grande beijo e muita luz pra tua vida!